O rio já não mais refletia a imagem celestial; tornou-se cinza. Fumaça. As águas, antes gélidas, vivas, estavam cálidas e os peixes sequer subiam à superfície. O som dos ventos, que há séculos trazia unicamente o cantar dos pássaros em coros, não era nada além do rugido distante de maquinários e o inconsolável choro de árvores milenares, que perdiam-se na ganância de mãos sujas.
E, ainda assim, nascera de novo uma mulher. Emergiu das águas profundas e esquecidas da Amazônia, elas que tanto foram violadas. Iara abriu os olhos, despertou como se houvesse acordado de um sonho secular. Ouvira o chamado das águas enfermas, dos troncos arrancados de suas raízes. A luz que outrora fazia-se dourada e vivida, era agora mórbida. Esquecida. Os cabelos longos e escuros, de maciez palpável, vinham cobertos de folhas mortas.
“Dormiram os pássaros,” murmurou, a voz suave, um afago, misturando-se à correnteza. “E dormiu o meu povo.”
Por séculos, Iara conhecera os homens. Cantara para eles — ora com doçura, ora com um amargor inevitável. Alguns prometeram-lhe amor eterno e, em passagens efêmeras, os amou de volta. Amou-os tanto que permaneciam nas memórias, nos pensamentos, mesmo após desaparecerem. Iara, que, diferente do amor prometido, viveria pela eternidade, amou e perdeu. Naturalmente, a complexidade do sentimento mostrava-se não distante dos ciclos da natureza — morreria e, então, renasceria ainda mais forte. Era um preço que dolorosamente pagava pela condição da vida eterna que, apesar das vantagens claras, naturalmente também doía.
Agora, no entanto, o tempo a deixou só. A eternidade amargava. Não havia mais cânticos, tampouco oferendas.
No silêncio espesso das águas, sentia a solidão se misturar ao ar pesado. Não foi a falta de amor; veio da ausência do mundo que conhecia. As vozes das árvores foram caladas, o frescor da mata se perdeu. A floresta, seu templo, era uma ferida aberta e pulsante, e Iara caminhava entre suas cicatrizes, ansiando curá-las. Viu os troncos queimados, as aldeias devastadas. Ouvia o eco de vozes nativas caladas; sentia o cheiro podre e adocicado da terra em agonia.
Quis tanto que despertasse a natureza. Que voltasse a graça de antes, e fez dessa vontade seu propósito. Enquanto seu canto ressoasse, seria ela a protetora daquelas terras; visitou outras aldeias, outros povos, conheceu mulheres, guerreiras sem armas. Lembrava-se de Jaci, de Iemanjá, de Naiá. Viu homens armados de serras e fogo, floresta à dentro, rindo e violentando o sacro terreno, enquanto moças escondiam-se e cuidavam de crianças e sementes. Essas moças — que eram humanas, frágeis, extraordinárias —, no entanto, falavam de resistência, de conservação, de cura, e Iara reconheceu nelas o mesmo espírito que antes vira nas deusas. A coragem de Jaci, que guiava o ciclo da noite; o ímpeto de Iemanjá, que levava e trazia o que os mates julgavam digno.
Iara as observava de longe. Viu-as de joelhos no barro, aos prantos ao ver a mata queimada, jurando que replantaria cada vegetação perdida. As mãos humanas eram sujas, algumas, mas existiam aquelas que cuidavam, que resistiam. Tais mulheres, simples e fortes, tornaram-se um novo coro reverberado pela floresta. Não precisavam de encantos, da imortalidade, Iara acreditava — ela, antes lenda temida nas margens, sereia que usava seu canto para arrastar homens para a morte, via-se inspirada por filhas da terra.
Foi então que ela, novamente, ergueu seu canto. Não mais uma arma; não mais o chamado dos homens. As ondas do rio vibraram, os pássaros cantavam por entre a ventania. Antigas companheiras ouviram, despertaram. Icamiabas, Iemanjá, Matinta-Pereira. Em uma noite, as estrelas brilharam mais alto e o mar refletiu a lua mais bonita. Juntas, numa aliança invisível, eram uma irmandade de deusas e mulheres que uniram-se contra o esquecimento. Contra as amarras que por tanto tempo as tentaram silenciar. Cada uma guardaria seu domínio, seu objeto de harmonia, mas compartilhavam do mesmo propósito: silenciar o ruído violento da ganância que destruía o sagrado da terra.
O tempo passou de modo diferente, para elas. As chuvas voltaram a cair com mais frequência, e a mata tentou se refazer, tímida, entre os ferimentos que lhe foram impostos. Iara caminhava entre as raízes, os pés descalços tocando o barro úmido, e via brotar pequenas flores onde antes só havia cinzas. Cuidava das águas, devolvendo-lhes o brilho; curava os peixes com o toque das mãos; e, quando alguém se aproximava do rio com intenções más, sentia a fúria subir-lhe pelos ossos, um poder antigo que lhe recordava que ainda era deusa, ainda era guardiã. Mas, em sua serenidade, preferia a justiça à destruição. Fazia com que os culpados se perdessem na floresta, levados por caminhos que não levavam a lugar algum — até que o medo os fizesse lembrar do respeito.
Nos dias mais silenciosos, Iara ouvia o som distante de vozes humanas. Firmes, guardiãs, como a dela. Uniam-se nas cidades, marchavam nas ruas, mas sempre em defesa do que vivia na mata. Denunciavam os que queimavam e saqueavam — estes que Iara via, nos desmatamentos e queimadas. E, ainda que não a vissem, a mítica sereia as acompanhava, soprando-lhes coragem mas sombras do medo. Uma nova geração de encantos, de ativistas. Ribeirinhas, estudantes, moças comuns. E, às vezes, quando o céu se abria azul sobre as copas, Iara via mulheres levando seus arcos em mãos. Flechas, feitas de galhos caídos e penas resgatadas, eram lançadas ao matagal como lembrete para aqueles que ainda se deixavam levar pela sujeira da ganância. Diziam, simbolicamente, que cada flecha que tocava o solo terminava em nova vida; Iara acreditava naquilo.
O amor, aquele que por séculos lhe trouxera dor e nostalgia, ganhava nova forma. Não era mais a paixão momentânea pelos homens que cruzavam seu caminho, mas um amor vasto, coletivo, uma ternura pela vida em todas as suas expressões. Um acalento. Agora, mesmo que sua existência fosse eterna, já não lhe pesava tanto a solidão — porque dividia seu tempo com as vozes que herdaram o mesmo fardo. Suas companheiras.
Numa manhã em que o rio espelhou o céu, Iara pegou-se sorrindo. O sol dourava-lhe a pele, e ela sentiu o calor atravessar-lhe o corpo, aquecendo algo antigo e adormecido. Talvez o mundo ainda pudesse ser salvo, pensou. Talvez a humanidade — parte dela —, com todas as suas falhas, ainda carregasse a centelha da vida sagrada. Inspirou profundamente, deixou escapar um novo canto; sereno, belíssimo, que misturava-se aos murmúrios dos animais silvestres.
Não mais um som atraente aos homens, para a perdição de seus corações. O som de uma guerreira. De uma guardiã. O som da luta em nome de seu lar.
